passarinhos

Antonia
3 min readSep 29, 2021

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a varanda tem passarinhos. diversos. cores tantas. perco minhas horas olhando pra eles. vermelhos. azuis. amarelos. verdes. cores. as curicas mandam nos bem te vis, os bem te vis brigam com os sabiás, os menores, os tiês, os saís, só se sentem à vontade com as curicas. é uma hierarquia curiosa. de proteções e brigas. é bonito para ver durante o dia.

queria poder fazer nada e ficar no sol olhando os passarinhos. esquecer. dos frilas. dos projetos. do dinheiro. da comida. da comida, não. cozinhar é bom. comer também. queria poder só comer. viver sem obrigações prementes. sem datas de entregas de trabalhos. sem exames de sangue ou medo de doenças. comendo manga no sol.

mas a vida nem real e de viés é. eu tenho de acordar e pegar um trabalho. e sentar no computador. e levantar pra fazer o almoço. e de novo trabalhar. e a tela. e tanta janela. acordei pensando que nunca mais sonhei em francês. eu costumava sonhar em francês quando meu inconsciente me dava broncas. fiquei pensando se eu ando boazinha. lembrei que um amigo (espero que seja amigo) nigeriano me disse que escreve em inglês, mas só sonha em iorubá. eu sonho em inglês e francês desde que me entendo por gente. têm tarefas específicas as línguas pro meu inconsciente.

eu falo português mesmo no dia a dia. interpreto. o dia todo entre línguas. uma vez perguntei a um professor o que era viver em tradução. falando de populações nômades. ele citou blanchot. eu talvez quisesse algo… menos europeu. mas blanchot realmente fala disso. desse instante em que o indizível passa a existir. não é sempre tradução? alguma tradução. entre espaços. entre mundos. o meu mundo e o mundo fora de mim. imperfeito. como qualquer tradução.

trabalhar com isso é abandonar o controle. saber que, apesar disso tudo. eu não tenho o controle do outro. nem do texto de origem. nem do receptor. eu não sei o que vai acontecer. e talvez não queira saber. talvez seja isso que eu tenha querido dizer ao falar que não sabia quem era o leitor da tese. eu não quero pensar nisso. e no entanto. me dou broncas em francês enquanto olhos os passarinhos. gaturamo. tiê. tomo meu café e o lado de fora segue tão bonito. quero ir ao mam. quero tanta coisa. sempre quis. e na verdade, não.

quero tomar café e olhar os passarinhos. sentar nesse sofá na varanda. e pensar que amanhã. amanhã os passarinhos vão estar aqui. o sol também. amanhã eu ainda terei perdido a disputa pelas jabuticabas. e o mundo lá fora ainda será duro. e intraduzível. absolutamente intraduzível. e eu na minha língua torta. roubada de tantos que vieram antes. emprestada. reutilizada. dobrada. mexida. adaptada. eu pego essas palavras e tento me achar. me colocar. existir. existir alguns dias é tão difícil. parece que exige mais de mim do que eu tenho. e exatamente o tanto que eu consigo.

agora eu consigo tudo. e durmo. e vou dar conta. e penso que tenho saudades. de tanta coisa. mas sobretudo sei que sou impotente. sei que ao fim do dia tomarei banho. de chuveiro ou de balde. vou ver os morcegos. os pequenos ou os grandes. vou ver os passarinhos. e lembrar de tantos amigos. de tanta coisa que eu não consigo dar conta. e não sei se vou conseguir um dia. o foco. é nos passarinhos.

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